sábado, 22 de janeiro de 2011

Geo-História

A Geo-História é o campo histórico que estuda a vida humana no seu relacionamento com o ambiente natural e com o espaço concebido geograficamente. É com Fernando Braudel (1949) que este campo começa a se destacar, passando a se definir e a se encaixar nos estudos históricos de “longa duração” . Por outro lado, a Geo-História pode se dedicar mais especificamente ao estudo de um aspecto transversal no decurso de uma duração mais longa, como fez Le Roy Ladurie ao realizar uma "História do Clima" (1967) . Nestes casos, ocorre muito freqüentemente que o geo-historiador tome para fontes, além da documentação mais tradicional, os próprios vestígios da Natureza (Ladurie esteve atento aos “anéis” que se formam nos caules das árvores de vida longa, considerando que, de acordo com conclusões já estabelecidas pelos botânicos, um anel estreito significa um ano de seca, e um anel largo um ano beneficiado por chuvas abundantes). Conforme se vê, a Geo-História deve dialogar necessariamente não só com a Geografia, como também com outras ciências da natureza (a exemplo da Botânica ou da Ecologia).

Nas décadas recentes começaram a surgir outras modalidades historiográficas próximas à Geo-História,como por exemplo a História Ecológica, que é já uma demanda das últimas décadas, assombradas pelos desastres naturais, pelas devastações florestais, pela ameaça de extinção de inúmeras espécies animais, pelo aumento da poluição e pelo crescimento desordenado nas cidades. A História Ecológica é de certo modo uma Geo-História acrescida de uma preocupação ecológica fundamental

Vamos retornar à primeira metade do século XX para entender a Geo-História a partir de um novo impulso de interdisciplnaridade que, por aquela época, acabava de surgir entre os historiadores franceses ligados à escola dos Annales e alguns geógrafos, principalmente os ligados à escola do geógrafo francês Vidal de la Blache. Partindo dos primeiros empreendimentos de Lucien Febvre, que  publicara uma obra intitulada "A Terra e a Evolução Humana" (1922), a Geo-História começa a tomar forma como uma nova possibilidade de campo histórico, até se delinear mais claramente com uma das mais emblemáticas obras que foram constituídas na conexão deste campo histórico com outros, tais como a História Econômica e a História Política. Referimo-nos à célebre obra "O Mediterrâneo", de Fernando Braudel.

Lucien Febvre já havia oferecido à comunidade historiográfica, com "A Terra e a Evolução Humana" (1922), as primeiras experiências voltadas para a aplicação das concepções espaciais derivadas da escola geográfica de Vidal de La Blache - muito mais voltadas para a idéia de um "possibilismo geográfico" do que para o "determinismo historiográfico" que se via,então, em outras correntes geográficas.  Mas seria Fernando Braudel o primeiro a aplicar estas novas noções a um objeto historiográfico mais específico e de maior magnitude.

"O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico no tempo de Felipe II" (1945) – obra que se celebrizou por entremear para um mesmo objeto o exame de três temporalidades distintas (a longa, a média e a curta duração), cada qual com seu ritmo próprio – traz precisamente no primeiro volume, dedicado ao estudo de uma longa duração na qual tudo se transforma muito lentamente, um modelo que marcaria toda uma geração de historiadores: a idéia de estabelecer como ponto de partida da análise historiográfica o espaço geográfico.


Nesta obra de Braudel, como em Vidal de La Blache, o “meio” e o “espaço” são noções perfeitamente equivalentes. Oscilando entre a idéia de que o meio determina o homem, e a de que os homens instalam-se no meio natural transformando-o de modo a convertê-lo na principal base de sua vida social, Braudel termina por associar intimamente a ‘civilização’ e a ‘macro-espacialidade’. Em Mediterrâneo ele afirma que, “uma civilização é, na base, um espaço trabalhado, organizado pelos homens e pela história” (BRAUDEL, 1966, p.107), e em A Civilização Material do Capitalismo (1960) ele reitera esta relação sob a forma de uma indagação: “o que é uma civilização senão a antiga instalação de uma certa humanidade em um certo espaço?” (BRAUDEL, 1967, p.95). Esta relação íntima entre a sociedade e o meio geográfico (no sentido lablachiano) estaria precisamente na base da formação de uma nova modalidade historiográfica: a Geo-História.

A Geo-História introduz a geografia como grade de leitura para a história (DOSSE, 1994, p.136), e ao trazer o espaço para primeiro plano e não mais tratá-lo como mero teatro de operações – e sim como o próprio sujeito da História – possibilita o exame da longa duração, esta história quase imóvel que se desenrola sobre uma estrutura onde os elementos climáticos, geológicos, vegetais e animais encontram-se em um ambiente de equilíbrio dentro do qual se instala o homem. Rigorosamente falando, não é tanto com a idéia de um “determinismo geográfico” que Braudel trabalha em O Mediterrâneo, e sim com a idéia de um ‘possibilismo’ inspirado precisamente na geografia de Vidal de La Blache. Afora isto, o empreendimento a que o historiador francês se propõe nesta obra paradigmática é o de realizar uma ‘espacialização da temporalidade’, e mais tarde ele aprimorará também uma ‘espacialização da economia’, chegando ao conceito de “economias-mundo” que já se encontra perfeitamente elaborado e sustentado em exemplos históricos com A Civilização Material do Capitalismo.

O objeto do primeiro volume de O Mediterrâneo – que representa a grande originalidade desta obra dividida em três partes que se referem a cada uma das três temporalidades que marcam os ritmos da história – é a relação entre o Homem e o Espaço. É esta relação que ele pretende recuperar através de “uma história quase imóvel ... uma história lenta a desenvolver-se e a transformar-se, feita muito freqüentemente de retornos insistentes, de ciclos sem fim recomeçados” (BRAUDEL, 1969, p.11). A interação entre o Homem e o Espaço, as suas simbioses e estranhamentos, as limitações de um diante do outro, tudo isto não constitui propriamente a moldura do quadro que Braudel pretende examinar, mas o próprio quadro em si mesmo. Eis aqui o primeiro ato deste monumental ensaio historiográfico, e é sobre esta história quase-imóvel de longa duração – a temporalidade espacializada onde o tempo infiltra-se no solo a ponto de quase desaparecer – que se erguerá o segundo ato, a ‘média duração’ que rege os “destinos coletivos e movimentos de conjunto”, trazendo à tona uma história das estruturas que abrange desde os sistemas econômicos até as hegemonias políticas, os estados e sociedades. Trata-se de uma história de ritmos seculares, e não mais milenares, e depois dela surgirá o último andar – a ‘curta duração’ que rege a história dos acontecimentos, formada por “perturbações superficiais, espumas de ondas que a maré da história carrega em suas fortes espáduas” (BRAUDEL, 1969, p.21).

É fácil perceber como o sujeito da história, nas duas obras monumentais de Braudel, transfere-se do homem propriamente dito para realidades que lhe são muito superiores: o ‘Espaço’, no Mediterrâneo; e a ‘Vida Material’, na Civilização Material do Capitalismo. São estes grandes sujeitos históricos que abrem o campo de possibilismos para as subseqüentes histórias dos ‘movimentos coletivos’ e dos ‘indivíduos’. Tal como observa Peter Burke em uma sintética mas lúcida análise de O Mediterrâneo, um dos objetivos centrais de Braudel nesta obra é mostrar que tanto a história dos acontecimentos como a história das tendências gerais não podem ser compreendidas sem as características geográficas que as informam e que, de resto, tem a sua própria história longa:



“O capítulo sobre as montanhas, por exemplo, discute a cultura e a sociedade das regiões montanhosas, o conservadorismo dos montanheses, as barreiras socioculturais que separam os homens da montanha dos homens da planície, e a necessidade de muitos jovens montanheses emigrarem, tornando-se mercenários” (BURKE, 1991, p.50)



'O Mediterrâneo e Felipe II', enfim, é a insuperável obra prima em que Braudel pretendeu demonstrar que o tempo avança com diferenças velocidades, em uma espécie de polifonia na qual a parte mais grave coincide com a história quase imóvel do Espaço, e onde temporalidade e espacialidade praticamente se convertem uma à outra. Paradoxalmente, apesar de ter sido o primeiro a propor uma “história quase imóvel” como um dos níveis de análise, outra grande contribuição de O Mediterrâneo foi a de mostrar que tudo está sujeito a mudanças, ainda que lentas, o que inclui o próprio Espaço. De fato, a leitura de O Mediterrâneo nos mostra que o espaço definido por este grande Mar era muito maior no século XVI do que nos dias de hoje, pelo simples fato de que o transporte e a comunicação eram muito mais demorados naquele período . Com isto, percebe-se que a espacialidade dilata-se ou comprime-se no tempo conforme consideremos um período ou outro nos quais se contraponham diferentes possibilidades dos homens movimentarem-se no espaço. Mais uma vez, homem, espaço e tempo aparecem como três fatores indissociáveis.

Se o Espaço está sujeito aos ditames do Tempo, por outro lado a Temporalidade também está sujeita aos ditames do Espaço e do meio geográfico. Apenas para dar um exemplo assinalado por François Dosse, o mesmo Mediterrâneo de Braudel também nos mostra um mundo dicotomicamente dividido em duas estações: enquanto o verão autoriza o tempo da guerra, o inverno anuncia a estação da trégua – uma vez que “o mar revolto não permite mais aos grandes comboios militares se encaminharem de um ponto ao outro do espaço mediterrânico: é, então, o tempo dos boatos insensatos, mas também o tempo das negociações e das resoluções pacíficas” (DOSSE, 1994, p.140). Desta maneira o Clima (um aspecto físico do meio geográfico) reconfigura o Espaço, e este redefine o ritmo de tempos em que se desenrolam as ações humanas. Espaço, Tempo e Homem.

A obra de Fernando Braudel também nos permite iniciar outra reflexão que retomaremos mais adiante, e que se refere à consideração de uma diferença fundamental entre “duração” e “recorte de tempo”. Braudel ousou estudar o ‘grande espaço’ no ‘tempo longo’. Quando falamos em “tempo longo” referimo-nos a uma “duração” – ou antes: a um determinado ‘ritmo de duração’. O tempo longo é o tempo que se alonga, o tempo que parece passar mais lentamente. Não devemos confundir “longa duração” com “recorte extenso”. O recorte de Braudel em O Mediterrâneo – pelo menos o recorte deste trecho da História de que ele se vale para orquestrar polifonicamente as três durações distintas – é o reinado de Felipe II. Braudel não estudou nesta obra um ‘recorte temporal estendido’. Ele estudou um recorte tradicional, que cabe em uma ou duas gerações e que coincide com a duração de um reinado, mas examinando através deste recorte a passagem do tempo em três ritmos diferentes. Uma outra coisa seria examinar um determinado espaço – grande ou pequeno – em um recorte extenso ou estendido. Dito de outra forma, o ritmo de tempo que o historiador sintoniza em sua análise de uma determinada realidade histórico-social nada tem a ver com o “recorte temporal historiográfico” escolhido pelo historiador.

Com relação ao seu recorte espacial, Fernando Braudel havia considerado que o Mediterrâneo possuía sob certos aspectos uma unidade que transcendia as unidades nacionais que se agrupavam em torno do grande “mar interior”, e que ultrapassava a polarização política entre os dois grandes impérios da época: o Espanhol e o Turco. Por outro lado, o historiador francês precisou lidar com a ‘unidade na diversidade’, e descreve dezenas de regiões autônomas cujos ritmos convergem para um ritmo supralocal. O mundo mediterrânico que ele descreve é constituído por um grande complexo de ambientes – mares, ilhas, montanhas, planície e desertos – e que se vê partilhado em uma pluralidade de regiões a terem sua heterogeneidade decifrada antes de ser possível propor a homogeneidade maior ditada pelo tipo de vida sugerido pelo grande Mar. Este foi o desafio enfrentado por Braudel.

[Leia o artigo completo, do qual este texto foi adaptado, e compreenda melhor a interdisciplinaridade entre História e Geografia, acessando: http://ning.it/eVVbrn]

[BARROS, José D'Assunção. "Geografia e História: uma interdisciplinaridade mediada pelo espaço" in Geografia - revista da Universidade Estadual de Londrina. vol.19, n°3, 2010. p.67-84]

Sobre a Geo-História, leia também o livro "O Campo da História" (Petrópolis: editora Vozes, 2011, 8a edição).

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Obras Citadas:

BARROS, José D'Assunção. O Campo da História. Petrópolis: editora Vozes, 2011, 8a edição.
BRAUDEL, Fernand. O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico na época de Felipe II. São Paulo: Martins Fonte, 1989.
DOSSE, François. O Tempo de Marc Bloch e Lucien Febvre. A história em Migalhas. Bauru: EDUSC, 2003. p. 91-146.
FEBVRE, Lucien. A terra e a evolução humana: introdução geográfica à história. Lisboa: Cosmos, 1991
GOUBERT, Pierre. “História Local” in História & Perspectivas, Uberlândia, 6-45-47, Jan/Jun 1992.
LA BLACHE, Paul Vidal de. Princípios de Geografia Humana. Lisboa: Cosmo,s/d.
LADURIE, Emmanuel Le Roy. Histoire du climat depuis l’an 1000. Paris: Flammarion, 1967.

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