sábado, 29 de janeiro de 2011

Espacialidades e Temporalidades da História

Nos dias de hoje, as identidades historiográficas tem sido construídas com um peso importante nas auto-definições de cada historiador em termos de modalidades historiográficas (campos históricos) com as quais ele dialoga, ou no interior de cujas conexões ele produz as suas pesquisas e elabora seus textos historiográficos. Desta maneira, são categorias identitárias importantes, para o historiador contemporâneo, expressões como "História Cultural", "História Política", "História Econômica", "Micro-História", "História Regional", para apenas citar alguns títulos da enorme miríade de campos históricos emque hoje é partilhado o saber e a prática historiográfica.


Por outro lado, os profissionais de História, sobretudo no âmbito do Ensino, mas também no universo institucional da Pesquisa, deve lidar alternadamente com uma série de categorias identitárias mais antigas e já tradicionais, que na verdade são já seculares para os historiadores. São as categorias que se referem a "espacialidades" e "temporalidades". Diz-se de um historiador - independente de suas conexões com a "história cultural", com a "história política" ou com a "micro-história" - que ele é um "medievalista", um historiador da "História Antiga", um historiador da "História da América", da "História da África", do Brasil-Império, e assim por diante. Estas categorias já são clássicas.

Embora o historiador não tenha nenhuma obrigação de se especializar em temporalidades ou espacialidades específicas, e seja cada vez mais comum encontrarmos os historiadores que se definem mais pelos "campos históricos" (História Econômica, História do Imaginário, História de Gênero, etc), é bastante comum que os historiadores sejam chamados a se especializarem em temporalidades ou espacialidades, particularmente quando assumem assentos universitários, já que os currículos de Graduação em História costumam se organizar em torno de uma tblatura que envolve sobretudo as espacialidades e temporalidades, com exceção da área de Teoria e Metodologia da História, que obviamente transcende este tipo de classificações.

Discorreremos, neste momento, sobre classificações relacionadas às ‘espacialidades’ e ‘temporalidades’. O critério das Temporalidades gera modalidades como a História Antiga, História Medieval, História Moderna, História Contemporânea. O critério das Espacialidades gera modalidades como a História Européia, a História da América, a História da África, a História do Brasil, ou as inúmeras histórias de realidades nacionais específicas. Uma ampliação da escala de observação espacial, em direção ao supra-nacional, pode gerar a História das Civilizações (se incorporarmos o conceito de “civilização”), ou, se pensarmos apenas em termos de um agregado planetário, um âmbito mais vasto denominado “História Universal”. Outras divisões relacionadas à espacialidade também podem ser pensadas, como a “História do Ocidente” ou “História do Oriente” (conceitos que sempre precisam ser problematizados, pois bem que poderia ser pensada uma “História do Hemisfério Sul” por oposição a uma “História do Hemisfério Norte”, se olhássemos para o planeta de acordo com uma outra leitura geopolítica). Por fim, é possível combinar “temporalidades” e “espacialidades” para gerar denominações específicas de modalidades históricas, como a “História da América Antiga”, a “História do Brasil Império”, ou a "História do Brasil República" (Quadro 2).

O Quadro abaixo foi construído relacionando no eixo das ordenadas as Temporalidades, e noeixo das abiscisas as Espacialidades. No encontro entre tempos e espaços, localizaremos as identidades historiográficas que habitualmente organizam nossos cursos de Graduação em História. O Quadro faz parte do livro "Teoria da História - volume 1: os conceitos fundamentais" (Petrópolis: Editora Vozes, 2011), a ser lançado em fevereiro deste mesmo ano.



Quadro 2: Modalidades da História por Espacialidade e Temporalidade. Alguns exemplos (Quadro extraído do livro Teoria da História (Petrópolis: Editora Vozes, 2011, vol1) e também incluído em artigo disponível em: http://ning.it/fiY5IC


Naturalmente que a combinação dos critérios da Espacialidade e da Temporalidade gera dilemas e problemas teóricos interessantes, nem sempre fáceis de resolver. Como situar a História do Império Romano, se este, em sua fase de maior expansão, abrangeu vastas regiões da Europa, Ásia e África? De igual maneira, o domínio grego, no período de apogeu militar das ligas Ateniense e Espartana, estendeu-se pela Europa e pela Ásia Menor, o que também inspira dilemas análogos[1]. Há ainda questões outras teóricas interessantes: embora a História Européia possa gerar as tradicionais divisões da História Antiga, da História Medieval, da História Moderna e da História Contemporânea, a História da América não se adéqua bem a esta tábua de leitura, uma vez que não há uma diferença plausível entre uma América Antiga e outra América Medieval que faça qualquer sentido para as sociedades que existiam no período pré-colombiano. De modo geral, denomina-se como “História da América Antiga” a todo o período da História da América que precede a colonização européia a partir da chegada dos espanhóis, dos portugueses, e depois dos ingleses. A série de “Histórias do Brasil”, em contrapartida, também tem as suas especificidades. Prefere-se dividi-la de acordo com sua situação no quadro político externo e interno: um ‘Brasil-Colônia’, um ‘Brasil Império’ já independente, e um ‘Brasil República’. Polêmicas conceituais também podem ocorrer quando estendemos para trás o olhar acerca de uma determinada realidade nacional. O Brasil do período colonial era já “Brasil”, ou seria melhor chamá-lo de “América Portuguesa”?[2].

Deve-se entender, antes de tudo, que os diversos critérios de divisão temporal, que hoje nos são tão familiares e corriqueiros a ponto de os discutirmos muito pouco, são eles mesmos históricos. Mais ainda, nem sempre foram tão gloriosos os começos de todos os “conceitos” que ocupam lugar de honra na Teoria da História. A “Idade Média”, por exemplo – uma modalidade temporal da História que tem sido universo de dedicação de alguns dos mais renomados historiadores europeus, tais como Marc Bloch, Georges Duby e Jacques Le Goff – traz na sua designação uma história à qual não faltaram as imposições depreciativas. Houve uma época em que a expressão “tempos médios” era empregada pela História Teológica para designar um momento da história mundana que já se demorava na sua função de preceder os “finais dos tempos”, estes nos quais um novo mundo se abriria definitivamente para os seres humanos considerados dignos da salvação, ao passo em que outros tantos mergulhariam na danação eterna. Mas depois, com o humanismo que começa a emergir na Itália da época de Petrarca (1304-1374), os “tempos médios” vão designar este longo período “bárbaro” e “sombrio” que se parecia se interpor de maneira incômoda entre o glorioso modelo da antiguidade clássica e os novos tempos humanistas que o queriam recuperar no trecento italiano[3]. Mas rigorosamente falando, tal como assinala Reinhart Koselleck (2006, p.271), parece ter sido Christoph Cellarius (1639-1707), em um manual escrito em 1685, um dos primeiros a já consolidar o uso da expressão “idade média” como designativo de uma das divisões da História Universal (1696), em uma obra que teve tanta repercussão que em 1753 já tinha atingido a sua 11ª edição[4]. A partir daí, “o conceito de Idade Média generalizou-se no século XVIII dos iluministas – quase sempre em sentido pejorativo – para transformar-se, no século XIX, em um topus fixo da periodização histórica” (KOSELLECK, 2006, p.271).

Estes exemplos em torno da trajetória de uma designação que percorre sentidos vários, entre outras investigações de trajetórias semânticas que poderiam se referir à “Idade Antiga”, “Idade Moderna”, “Idade Contemporânea”, “Modernidade”, “Pós-Modernidade” – mostram claramente a historicidade dos próprios conceitos e categorias utilizadas para abordar a questão mesma da ‘historicidade’[5]. Neste quadro de problemas teóricos, ocupam lugar de destaque as intrincadas polêmicas sobre os limites que separam determinadas temporalidades. Quando se encerra a Idade Antiga e inicia-se a Idade Medieval? De acordo com as distintas teorias sobre a desagregação, desarticulação, queda, declínio ou transformação cultural do Império Romano, as datas ou períodos de separação ou transição entre uma época e outra podem oscilar historiograficamente de modo considerável, e já foram propostas interpretações que sinalizam a passagem de um pra o outro período em momentos diversificados no interior de um período de consideráveis extensões que vai do século II ao século VIII. Novos conceitos também podem surgir destas oscilações interpretativas: a “Antiguidade Tardia” pode se estender Idade Média adentro, disputando territórios historiográficos com a “Alta Idade Média”[6]. Sobre isto, ver também http://ning.it/eJ9XEg, em artigo no qual discorremos sobre as ambiguidades relacionadas às fronteiras entre Antiguidade e Idade Média.

Também são igualmente ambíguas as fronteiras entre a Idade Média e a Idade Moderna[7], e ainda mais aquelas que podem ser estabelecidas ou propostas entre a Idade Moderna e a Idade Contemporânea[8]. De igual maneira, quando pensamos no mundo contemporâneo, que período estaríamos vivendo agora, nesta era tão peculiar que se inicia nas últimas décadas do século XX e que adentra o novo milênio: uma Idade Pós-Industrial?, um período Pós-Moderno?, uma fase avançada do Capitalismo Tardio? Surgirá um dia a “História Pós-Moderna”? Na medida em que avançarmos para o Futuro, será necessário redefinirmos toda a tábua tradicional de leitura habitualmente aceita para as temporalidades históricas, já que a “história contemporânea” de hoje será do passado, da mesma forma que a “história moderna” já não é mais moderna? A largas pinceladas, será útil rediscutir as modalidades temporais da História em termos de uma “História da Era Agrícola”, uma “História da Era Industrial”, e a mais recente “História da Era Digital”?

As subdivisões da História sempre geram problemas teóricos a serem resolvidos. Será desnecessário lembrar que a organização da História por modalidades internas que combinam os critérios da ‘espacialidade’ e da ‘temporalidade’ constituem apenas recursos para organizar o trabalho historiográfico em um primeiro momento, mas não são grilhões ou compartimentos para aprisionar os objetos históricos, que inúmeras vezes não correspondem aos espaços nacionais rigidamente estabelecidos, ou balizas temporais inflexíveis[9].

Veja o artigo do qual foram extraídos o Quadro e o texto acima em http://ning.it/fiY5IC
[BARROS, José D'Assunção. "Sobre o conceito de Campo Histórico". História-e-História. Unicamp: março de 2010]

O mesmo quadro e comentário podem ser encontrados em BARROS, José D'Assunção. Teoria da História - volume 1. Petrópolis: editora Vozes, 2011.


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Notas:

[1] Convocar a Civilização Greco-Romana para a História do ocidente, aliás, constitui já um ponto de vista teórico, e também ideológico. Há uma certa maneira de ver as coisas que permite escolher o mundo Greco-romano como uma das bases civilizacionais do Ocidente Cristão.
[2] América Portuguesa, por exemplo, foi o nome que um historiador no século XVIII – Rocha Pitta – preferiu para designar, em 1730, a vasta extensão sob domínio português que depois daria origem ao Brasil independente (1976).
[3] Sobre os primórdios da noção de uma “idade média sombria”, nos escritos de Petrarca, um estudo de referência é o de T. E. MOMMSEN, 1942, p.226-242.
[4] A expressão “idades médias”, ou “tempos médios”, já aparece no século XV com os humanistas italianos Leonardo Bruni (c.1374-1444) e Flávio Biondo (c.1362-1493); e, antes dele, conforme já foi ressaltado, Petrarca se referira aos “tempos sombrios” que se situavam entre a Antiguidade Greco-Romana e os novos tempos que começavam a retomar mais enfaticamente as referências da antiguidade clássica. Mas o uso da expressão “Idade Média” como claro designativo de um período de tempo a ser inserido em uma estrutura tripartida para a compreensão da história pode ser mesmo atribuído ao erudito alemão Christoph Cellarius, que já divide a sua História Universal nos períodos “Antigo”, “Medieval” e “Novo”.
[5] Também a tendência a pensar nos séculos como unidades de sentido histórico tem a sua história, como tão bem assinala Reinhart Koselleck: “[...] a partir do século XVII eles [os séculos] adquirem cada vez mais pretensões históricas próprias. Passam a ser entendidos como unidades coerentes de sentido. O século do Iluminismo já é pensado assim pelos contemporâneos, estando consciente, por exemplo em Voltaire, de ser diferente do século de Luís XIV” (KOSELLECK, 2006, p.283).
[6] Na Alemanha, Alois Riegl, com seu livro sobre a arte nos últimos tempos da Roma Antiga (Arte Tardo-romana) foi dos primeiros a popularizar o conceito de Spätantike (“Antiguidade Tardia”). Mais recentemente, o historiador irlandês Peter Brown (n.1935) consolidou o uso do conceito na língua inglesa, com os livros The World of Late Antiquity (1971) e The Making of Late Antiquity (1978). Para Brown, a “Antiguidade Tardia” não corresponderia a um período de declínio, mas a um tempo de recomeços, de novas redefinições sociais e culturais que, ainda assim, poderiam ser localizadas dentro dos quadros da Idade Antiga.
[7] Os processos e eventos sinalizadores da Idade Moderna, muito evocados para a delimitação deste período, são vários, entre os quais a (1) Reforma – que institui definitivamente um mundo cristão dividido em várias Igrejas, quebrando de uma vez por todas a pretensão de controle papal sobre toda a religiosidade cristã – bem como (2) o fortalecimento das monarquias absolutas, (3) o deslocamento, em relação ao eixo marítimo principal, do Mediterrâneo para o Atlântico, (4) a expansão européia através das grandes navegações, com a subsequente conquista das Américas, e (5) a mundialização através do comércio de longo alcance. Outro evento importante, que chegou mesmo a ser estabelecido como marco, foi (6) a tomada de Constantinopla pelos turcos, colocando um fim no Império Bizantino, que persistira e resistira durante todo o período medieval, e firmando as fronteiras da expansão islâmica contra a cristandade. Em termos do paradigma apoiado no Materialismo Histórico, (7) o declínio do ‘modo de produção feudal’, apesar de suas persistências até períodos avançados do Antigo Regime, permite que por esta mesma época de transição se entreveja a formação de um modo de produção capitalista, ainda na sua fase mercantilista.
[8] Na historiografia européia, convencionou-se pensar nos marcos da Revolução Francesa e do movimento de Independência Americana como sinalizadores iniciais de um novo período que seria chamado de “História Contemporânea”. Embora sejam sinalizadores carregados de euro-centrismo, e mesmo de franco-centrismo, a escolha do período iluminista como marco inicial da contemporaneidade encontra respaldo na percepção de que os iluministas, e particularmente os homens envolvidos com as lutas revolucionárias na França, passaram a incorporar um sentimento intenso de que estavam fazendo história no seu próprio tempo presente, sendo já personagens de uma nova era. De modo geral, mesmo os historiadores fora da França e em período posterior não questionaram a validade deste marco ou de uma distinção entre a “história contemporânea” e a “história moderna”. Koselleck, no capítulo “Modernidade” de seu Futuro Passado (1979), registra as seguintes observações sobre Ranke: “Ranke, enquanto ensinou, sempre de novo se referia à ‘história dos tempos mais recentes’ ou ‘história contemporânea’, que, dependendo da temática, ele fazia começar com o velho Frederico [rei da Prússia] ou com a Revolução Francesa ou a Americana. Só quando falava da história que lhe era contemporânea é que se desviava do uso lingüístico tradicional, chamando-a de ‘história de nosso tempo’” (KOSELLECK, 1979, p.281). Prenuncia-se então, também aqui, um novo conceito que seria o da “História do Tempo Presente”. Com relação ao “sentimento do novo” entre os europeus do final do século XVIII, é também Koselleck (p.180) quem traz à luz esta passagem de H. G. M. Köster, escrita em 1787 para o verbete “História” da Enciclopédia Alemã: “quase toda a Europa ganhou uma configuração totalmente diferente {...} e quase aparecer nesta parte do mundo uma nova raça de homens” (KÖSTER, Deutsche Encyclopedie, 1787, p.657). / De resto, cumpre observar que a passagem da Idade Moderna para a Idade Contemporânea tem como processo distintivo importante o advento da Era Industrial.
[9] Sobre isto, Paul Veyne faz uma interessante observação: “Uma vez que todo acontecimento é tão histórico quanto um outro, pode-se dividir o campo factual com toda liberdade. Como se explica que ainda se insiste em dividi-lo tradicionalmente segundo o espaço e o tempo, ‘história da França’ ou ‘o século XVII’, segundo singularidades e não especificidades? Por que ainda são raros livros intitulados: ‘O Messianismo revolucionário através da História?’, ‘As Hierarquias Sociais de 1450 a nossos dias, na França, China, Tibet e URSS’ ou ‘paz e guerra entre as nações’, para parafrasear títulos de três obras recentes? Não seria uma sobrevivência da adesão original à singularidade dos acontecimentos e do passado nacional?” (VEYNE, 1982, p.42).




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Referências:

BARROS, José D’Assunção. O Campo da História. Petrópolis: Vozes, 2008 (6ª ed.) [orig.: 2004].
BROWN, Peter, o Fim do Mundo Antigo, Lisboa: Verbo, 1971.
CELLARIUS, Christoph. Historia Universalis. Altemburg: 1753, 11ª edição [originais dos três volumes: 1696, 1704, e póstumo 1708].
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado – contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006 [original: 1979].
KOSTER, H. M. G. “Historie” in: Deutsche Encyclopädie oder Algemeines Real-Wörterbuch aller Künste und Wissenschaften. Frankfurt: Koster und Ross, 1787. vol.XII.
MOMMSEN, T. E. Petrarch’s Conception of the ‘Dark Ages’. Speculum. n°17, 1942, p.226-242.
ROCHA PITTA. História da América Portuguesa. Belo Horizonte: Itatiaia, 1976 [original: 1730].
VEYNE, Paul. Como se Escreve a História. Brasília: UNB, 1982 [original: 1971].

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